ESTADO DA ARTE
O que é o contemporâneo?
contemporâneo
(latim contemporaneus, -a, -um)
(latim contemporaneus, -a, -um)
adj.
s. m.
1. Que
ou quem é do mesmo tempo ou da mesma época. = COETÂNEO, COEVO
2. Que
ou quem é do tempo actual.
Uma questão
aparentemente simples. No entanto vários foram os autores que se debruçaram
sobre ela ao longo dos últimos anos, décadas até. Se recuarmos um pouco no
tempo, percebemos que esta questão foi colocada inúmeras vezes ao longo da
História, isto se entendermos o termo na sua definição mais básica. E porquê?
Porque temos tanta necessidade em pensar o nosso tempo, o que nos define e onde
nos inscrevemos?
Comummente, o termo
«moderno» surge-nos enquanto sinónimo de «contemporâneo», distanciando-nos de um
momento outro que fora o passado, ligado a um certo tradicionalismo, deposto
por acontecimentos que marcaram uma viragem a níveis diversificados. Contudo,
quando pensamos a «modernidade» numa acepção mais informada, esta remete-se
para um momento na História marcado pela representação de um mundo com raízes
no Humanismo Renascentista, formalizando-se a partir do século XVIII, com o
advento do Iluminismo. A partir daqui, rapidamente percebemos que não estamos a
falar da realidade do século XXI; contudo, é importante reflectirmos sobre o
que foi o «projecto moderno» e de que forma este nos pode servir enquanto
mediador para o entendimento do momento em que nos inscrevemos actualmente.
É interessante
percebermos como estes conceitos encontram o seu equivalente no domínio das
artes. Quando falamos de determinismos cronológicos, quando reflectimos sobre o
tempo ou sobre a História, a Arte surge-nos enquanto exemplo determinante. E a
partir daqui facilmente percebemos a sua importância sociológica e antropológica.
Vários foram os
conceitos sugeridos - por pensadores, críticos e autores consagrados - de modo
a pensarmos os dias que sucederam o fenómeno moderno, findo em meados da década
de 70 do século XX: pós-modernidade, alter-modernidade, supermodernidade, modernidade
líquida. No entanto, é aqui revelada uma dependência comprovada pela constante
apropriação do sufixo. Em «Le Siècle», Alain Badiou afirma que ainda estamos
tão dependentes do século XX que, provavelmente, o seguinte ainda não terá tido
a oportunidade de começar.
Daqui surgem os
argumentos para pensarmos a modernidade de modo a conseguirmos chegar a algumas
conclusões sobre o que será a contemporaneidade: Afinal, o que
foi ser moderno? E de que forma este intuito fundamental, gerado pelo que
chamamos de modernidade contribui de forma significativa para o que depois
chamamos de contemporaneidade? Que relações podem ser estabelecidas entre estes
dois momentos para que possamos tirar as nossas próprias conclusões sobre a
acção actual e seus respectivos propósitos?
O alargamento de
fronteiras físicas e intelectuais do mundo Ocidental, suscita uma nova noção de
realidade que exige uma reformulação da representação - a Modernidade nasce
desta tentativa de resposta às transformações sofridas. Surge, portanto, uma
nova noção de tempo, privilegiando-se o presente e o futuro em detrimento do
passado: é pretendida e fomentada uma transformação irreversível face a esse
período anterior, de forma a enriquecer o presente.
Foram várias as figuras
que, num primeiro momento, estabeleceram um modelo primário de Modernidade
(Descartes, Copérnico, Galileu…), possibilitando a submissão à crítica de todas
as representações do mundo herdadas da tradição, provenientes de vários
domínios, de modo a fomentar uma reconstrução da própria noção de homem e de
mundo.
Foram sete as grandes
categorias fundadoras do conceito de Modernidade: secularização; razão e
crítica; progresso; revolução; experimentação e
matematização do real; emancipação
e universalidade.
A secularização propôs uma representação de mundo independente de
representações religiosas, assentando antes na razão e na experiência do
próprio sujeito. No domínio da Arte, este movimento permitir-lhe-á a
autonomização, assistindo-se a um processo de sacralização profana da própria
ideia de arte, onde esta se toma como fim de si mesma (arte pela arte).
A promoção da razão e da crítica apresenta um novo exercício de avaliação da validade das
representações de mundo disponíveis, promovendo uma reformulação destas
últimas.
A noção de progresso foi possivelmente dos
conceitos modernos que mais críticas recebeu em momentos posteriores. Afirma a
experiência humana como processo cumulativo de enriquecimento, tanto individual
como colectivo, ligado a uma aquisição de poder e saber. Em termos artísticos,
admite-se uma nova noção que propõe a descoberta da sua própria natureza,
entendida como uma linha progressiva instalada no segmento da criação.
O termo revolução, no contexto da Modernidade,
sugere um sentido evolutivo. A revolução é entendida como impulso violento que
entra em ruptura com o passado e instaura o «novo». No domínio artístico, as
vanguardas modernistas afirmavam a sua particularidade através de um corte
permanente com as tradições que lhes antecederam.
A ciência moderna
propõe a matematização do real,
comparando a representação do mundo a uma enorme máquina cujas leis é possível
conhecer e dominar. Estas ideias contagiaram profundamente o mundo artístico,
contribuindo para que o trabalho de um grande número de artistas se assemelhe a
«investigações», no que diz respeito às particularidades de cada tipologia.
A emancipação é entendida pela Modernidade como uma autodeterminação
por parte do Homem, de libertação da prisão da ignorância ou da subjugação
política que o conduzirá à liberdade. A formação é reconhecida como instrumento
que permitirá aos homens um correcto uso da razão e da liberdade. Também a Arte
se define segundo esta ideia de autonomia, reclamando independência face a todo
um conjunto de poderes (religioso, político, tradicional).
O conceito de universalidade faz também parte dos mais
refutados. A modernidade visa a abolição de fronteiras culturais, afirmando a
partilha de uma identidade comum a todos os homens, o que conduzirá ao
nascimento da ideia de Humanidade. Ambiciona-se, portanto, a criação de uma
noção de uma identidade comum supra-cultural. Promove-se um definitivo
alargamento do sujeito, indivisível pela diversidade cultural ou outra. No
domínio artístico, tal serve de fundamento para a defesa de que existirão
valores estéticos de carácter universal.
Paralelamente às
tentativas de definição de um tempo, surge a definição de quem experiencia e
constrói esse mesmo tempo. Simultaneamente, ao pensarmos o tempo moderno não
podemos excluir o homem moderno. Baudelaire foi um dos principais pensadores a
procurar sistematizar as características de quem vivia, de facto, a
modernidade.
Em
resposta às dúvidas geradas pelo seu balizamento cronológico, Baudelaire (1821-1867)
apresenta o Salão de 1846 como definidor da modernidade, através de uma outra e
nova interpretação do mundo e da arte. Esta, ligada a ideias-chave como o
protagonismo da imaginação criadora (que substitui assim o carácter
temperamental do chamado «romantismo revisitado»), através da qual o pintor
recria o mundo, incluindo-se agora nessa recriação. Neste sentido, as ideias de
outrem ou do passado são recriadas, ao invés de serem vistas como um exemplo a
seguir. São objecto de uma nova reflexão, de uma nova abordagem e, sobretudo,
motivos de uma nova visão moderna.
O
tempo foi outro aspecto importante na Modernidade. O eterno, o tempo de glória,
o momento-chave, é agora substituído pelo efémero, carregado de mudança e
renovação.
O
que é então ser moderno segundo Baudelaire? Ao determos a atenção na sua obra,
encontramos características como a «originalidade», «homem do mundo»,
«curiosidade», «convalescença», «amante da vida universal». O segundo termo
mostra-se fundamental para a compreensão do pintor moderno, pois define um
sujeito universal e global, opondo-se à noção de artista especialista, fechado
no seu próprio mundo, escravo da sua própria arte. O artista moderno é mais do
que artista, é um curioso, abraça o mundo e todas as suas formas, sem pudor nem
restrição. É, por isso, livre. Em oposição ao artista não-moderno, este
envolve-se com o mundo moral e político, vive para além da técnica.
A
este termo está necessariamente ligada a «curiosidade», mostrando-se o ponto de
partida da sua genialidade enquanto artista, assim como motor da sua prática
plástica. Esta última está ainda associada ao estado de convalescença, tal como
uma criança, gozando do seu interesse por tudo e todos, uma chama viva e
intensa que arde por qualquer aspecto por mais trivial que este seja,
decifrando o seu interesse mundano. Contudo, esta sensibilidade infantil
presente no pintor moderno, ganha poder e forma através da expressão plástica e
do espírito analítico aos quais está associada. Para o artista moderno nada é
enfadonho, nada é de importância menor, desde que lhe desperte o instinto.
Contudo,
o que chamamos de Arte Moderna – conjunto de práticas artísticas inseridas num
período histórico situado na primeira metade do século XX, comummente conhecido
como Modernismo – foi acompanhada de teorizações de índole formalista,
sistematizadas por um dos seus maiores teóricos: Clement Greenberg (1909-1994).
Greenberg
aponta como principal motor de transformação da arte moderna o auto criticismo
que a pontuou, sendo este a causa para que a mesma tenha buscado a constante
superação. Segundo este autor, as práticas desenvolvidas ao longo da primeira
metade do século passado, caminharam ao longo de um processo de purificação que
as conduziria em direcção da essência da Arte. A busca da chamada «pureza
artística», implicaria a redução às mais essenciais características de cada
tipologia, potenciando uma experiência de cariz afirmadamente sensorial,
retiniano no caso das artes plásticas. Tal implica uma depuração através de um
processo de renúncia do que não pertence às qualidades essenciais do medium. Neste sentido, Greenberg
pretende delimitar cada tipologia artística, não promovendo misturas.
Fora
precisamente o enunciado formalista de Greenberg, juntamente com as catástrofes
reveladas pela Segunda Grande Guerra, que levaram a um questionamento profundo
do «projecto moderno». Não só as práticas artísticas que lhe sucederam, por
volta da década de 60 e 70 do século XX, como também um número significativo de
teóricos, acompanharam esta reformulação de propósitos.
Em
“A voyage on the North Sea: Art in the age of the post medium condition”,
Rosalind Krauss (1941 - ) apresenta o termo pós-medium como conceito apropriado
para pensar a arte num contexto não modernista. Recusa a visão universal,
padronizada, preconizada por Greenberg, onde o valor da obra de arte se
mostrava independente do contexto social, sexual e geográfico do artista. Surge
a ideia de estarmos sob um novo momento: o pós-modernismo,
onde a diferença e os contextos particulares eram assumidos e desenvolvidos
enquanto propostas artísticas.
De que forma podemos pensar a era contemporânea em
relação à modernidade? A partir do conceito de superação, intensificação ou
bloqueio? Nesta medida, apresentamos de seguida alguns dos principais
pensadores que reflectiram sobre esta questão, discutindo não só as reacções ao
«projecto moderno», como ainda àquilo que foi chamado de «pós-modernismo».
Muitos foram os autores que, até aos
dias de hoje, reflectem sobre a noção de pós-modernidade. Alguns restringem-no
a uma parte da produção artística das últimas décadas do século XX, outros alargam
o seu âmbito à generalidade da arte posterior ao modelo das vanguardas
modernistas ou históricas. Contudo, para Lyotard, o conceito de pós-modernidade
não significa de modo algum a recusa ou superação da herança deixada pelas
vanguardas modernistas, pelo contrário.
Jean-François Lyotard (1924-1998) propõe
a submissão da modernidade a um reexame crítico, onde expõe uma certa desilusão
face a algumas ideias assumidas pela mesma ao longo do século XX, assumindo o
falhanço do projecto moderno a partir da ideia do traumático e marcante campo
de concentração de Auschwitz. Contudo, não descarta alguns dos que foram os
valores mais nobres do que chamamos de Modernidade.
Perante a necessidade de repensar o que
fora a modernidade, Lyotard apropria-se do conceito de «pós-modernidade»
enquanto questionamento crítico das categorias que a estruturaram. Entre estes
encontra-se o questionamento da pretensão do carácter universal ou absoluto dos
valores e da verdade; o condicionalismo das experiências a partir de contextos
culturais, históricos, psicológicos diferenciados e a negação de discursos
privilegiados. Ao invés disso, apela à afirmação do relativismo, do
multi-culturalismo e do pluralismo como alternativa a estes valores; tenta
escapar àquilo que a modernidade assumiu totalitariamente.
Lyotard recusa a ideia de olhar para a
pós-modernidade enquanto período histórico, surgido após a modernidade. Propõe
antes uma leitura da modernidade a partir do seu interior. Para este autor, a
pós-modernidade nasce da constatação do falhanço do projecto moderno, que
pressuporia uma rescrita ou revisão crítica do mesmo.
Este falhanço deu-se a partir do momento
que duas das grandes meta-narrativas da modernidade sofrem abalos
incomensuráveis: Auschwitz surge como a negação de toda e qualquer ideia de
emancipação e de universalidade. Tanto para Lyotard como para Adorno, o que
sucedera no famoso campo de concentração nazi marcara não só o fim das ilusões
destas duas categorias modernas, assim como o das grandes meta-narrativas, demonstrando
a impossibilidade de conferir um sentido único à história, baseado num objectivo
universal a ser atingido. Na tentativa de subordinação de todos os fenómenos
particulares à unicidade de uma grande narrativa, a modernidade torna-se um
instrumento de repressão da individualidade e da diferença.
Contudo, Lyotard encontra em alguns
pressupostos defendidos pela modernidade premissas válidas para o entendimento
não só da obra de arte, mas ainda do papel do seu criador e da relação
estabelecida com o público. Propõe-nos um modelo de relação entre observador e
obra baseado na postura crítica moderna, onde este questiona a figura do
sujeito, a noção de objecto artístico e, sobretudo, o discurso filosófico
subjacente à própria arte. O filósofo francês transporta o processo de
experimentação inerente à produção artística para o âmbito do espectador,
tornando-o agente de construção ou desconstrução experimental daquilo que lhe é
apresentado enquanto objecto artístico. A obra não se apresenta enquanto signo
passível a interpretação, mas antes como algo exposto à capacidade de
experimentação do espectador, envolvendo-o neste processo. Neste sentido, a
obra de arte é encarada como algo que é progressivamente trabalhado, marcada
por uma multiplicidade de perspectivas que a impedem de se limitar a uma só.
A partir da capacidade crítica e do
questionamento característicos da modernidade, a Estética substitui a clássica
questão “o que é o belo?” pela “o que é a arte?”. Daqui nasce a possibilidade
de redefinir aquilo que comummente é assim designado.
Perante a importância das vanguardas
artísticas, Lyotard assume uma posição algo ambígua: reconhece-lhes a
importância dos desenvolvimentos ao nível da experimentação artística; por
outro lado, questiona o comprometimento político inerente a numerosas
vanguardas, denunciando-o enquanto consequência de uma modernidade fundada em
meta-discursos de emancipação, invalidados ao longo das últimas décadas.
As vanguardas encaminharam o
desenvolvimento artístico na obrigação de uma permanente reinvenção e
redefinição do seu estatuto e linguagem, marcando profundamente o que hoje
chamamos de arte contemporânea.
Ao que apelidamos hoje de
Pós-modernidade, Marc Augé (1935 - ) prefere apelidar de «supermodernidade»,
conferindo-lhe o carácter de continuidade. Na modernidade actual podemos
observar um maior número de factores de aceleração – na dimensão tempo, por
exemplo – do que de ruptura. Critica a ideia de «pós» como um prefixo que impõe
uma ideia completamente oposta de modernidade. Tal não é possível, nem sensato,
visto que para entendermos o que somos hoje, temos obrigatoriamente de olhar
para o passado. Afirma que temos que nos debruçar perante a sociedade e a
humanidade, conjuntamente, sublinhando o perigo de pensar apenas a partir do respeito
à diversidade. Esta última é, em princípio, algo benéfico, mas não
sistematicamente. Pensa a cultura, a diversidade e a identidade sempre em
movimento, nunca de uma forma fixa.
Augé apresenta a ideia de «não-lugar»
como um espaço de passagem incapaz de conferir qualquer tipo de identidade. Na
sua obra, sistematiza três principais características desta organização social
que apelida de supermodernidade.
A primeira seria
um novo entendimento da categoria tempo. O ideal de progresso presente na
modernidade colapsa diante de guerras e genocídios, frutos da intolerância e da
violência humana. Isto somado a uma sociedade regida pela alta tecnologia, o
tempo tornou-se profundamente acelerado. Tudo se torna História a uma
velocidade nunca vista, mas que, pelo excesso de informação que detemos, já
nada é visto enquanto acontecimento. No entanto, Augé verifica uma necessidade
de dar sentido ao presente, ou até mesmo ao passado, mostrando-se como um
resgate da superabundância factual que corresponde a uma situação que
poderíamos chamar de supermodernidade.
Como tal, para o autor, organizar o mundo a partir da categoria tempo não é
mais possível.
Outra
característica da sociedade actual é a constante transformação espacial, a
mobilidade social, a troca de bens e serviços e o fluxo de informação. O mundo
já não nos parece infinito, tudo - e simultaneamente nada - está ao alcance de
todos, em qualquer lugar do planeta.
Por último, a
característica mais marcante desta organização social contemporânea, para Augé,
trata-se do enfraquecimento das referências colectivas causado pelos pontos
anteriormente referidos. Gera-se, ao invés disso, um individualismo exacerbado,
contudo sem identidade. Daí que, o chamado não-lugar
não seja relacional, identitário e histórico. São espaços de ninguém, não geram
identidades. Contrapõem-se a este tipo o lugar antropológico: cria identidade
por trazer em si o local de nascimento, da intimidade do lar, das coisas que
nos pertencem; demarca, precisamente, as fronteiras entre nós e os outros.
Já segundo Nicolas
Bourriard (1965 - ), não somos modernos nem pós-modernos, mas antes seres de
uma nova era em que se actua e cria a partir de uma visão positiva de caos e
complexidade – a altermodernidade.
Este debate de
Bourriard tem raízes antigas e envolve grandes nomes da cultura contemporânea,
tais como Heidegger, Wittgenstein, Benjamin, Baudelaire, Bataille, Lyotard,
Foucault, Baudrillard, Derrida e Lipovetsky.
A batalha entre
modernos e pós-modernos, segundo a perspectiva deste autor, terminou na medida
em que o evento da actual crise económica internacional chegou até nós em 2009.
Este singular acontecimento, terá alterado toda a concepção do que somos
actualmente, despoletando o nascimento da primeira era cultural do mundo
globalizado.
O conceito de altermodernidade rejeita a visão linear
da História sugerida pelo modernismo, assim como a imagem desta a «avançar em
espirais de eternos retornos» como terá defendido o pós-modernismo. A História
é agora vista como constitutiva de múltiplas temporalidades simultâneas, nas
quais a arte e a vida surgem como experiências positivas de desorientação,
explorando todas as dimensões do presente, quer ao nível do tempo como do
espaço.
Bourriaud afirma que a
modernidade fora um conceito ocidental. Na actualidade, vivemos num labirinto
mais complexo do qual temos que extrair significados específicos para o século
decorrente. A partir daqui, a modernidade dos dias de hoje não pode ser
totalizadora nem continental.
Com o pós-modernismo,
surgem muitas outras ideias a que chama de nostálgicas: o pós-feminismo, o
pós-colonialismo, o pós-político; através do conceito de altermodernidade,
pretende que a arte se reinvente a si mesma, actuando numa escala planetária,
escapando ao conforto de uma redundância saudosista que terá sido característica
no período pós anos 70.
Para tal, Bourriaud vai
recuperar algumas ideias da modernidade. Catapultando a arte para além do
tradicionalismo, fugindo ao confinamento do nacionalismo e do etiquetamento
identitário, o curador da Tate guarda ainda a ideia baudelairiana do «flâneur».
Este último é aquele que percorre a cidade e se perde na sua observação; o flâneur altermoderno é um nómada global,
um errante cultural, aquele que se distancia do enraizamento absoluto, negando
valores como a origem, e preferindo a troca à imposição de comportamentos,
ideias e imagens. É nesta medida que é produzida criatividade e conhecimento.
As ideias mais
sublinhadas são as da multiplicidade, da tradução e da viagem. Este novo tipo
de viagem tem como ponto de partida a hipermobilidade da Internet, que nos
fornece novas formas de entender o que é o espaço. O hipertexto também deixou a
sua marca: generalizou-se como processo de estruturação de pensamento, janelas
que se abrem em sequências infinitas, bastando-lhes apenas um clique.
Bourriaud compara a
nossa civilização com um arquipélago: uma entidade abstracta que é exemplo da
relação entre o uno e o múltiplo. A explosão multicultural e da proliferação de
estratos culturais parece-se com uma constelação sem estrutura, à espera da sua
transformação em arquipélago, defende.
Pensa o pós-modernismo
como a filosofia do lamento, chamando-lhe até de «longo episódio de melancolia
na nossa vida cultural».
Por
outro lado, Arthur Danto (1924 - ) apresentaria como sua tese central o facto
de a arte contemporânea não ser mais representada por «narrativas mestras». Com
a arte contemporânea, desaparece a pureza do meio, do veículo artístico. Afirma
que estamos a emergir da era da arte para algo profundamente diverso, ainda
incompreendido ao nível da forma e da estrutura. Contrariamente à arte moderna,
a arte contemporânea não rompe o compromisso com o passado, não baseia o seu
fundamento nesta premissa. Este período é definido por uma falta de direcção
histórica. Os últimos 30 anos são encarados como um período rico no que diz
respeito a uma produtividade experimental no campo das artes: ao objecto
artístico questiona-se o porquê deste status,
encerrando o momento modernista dando lugar a um outro, diverso. Visto que a
arte deixa de estar circunscrita por determinados ditames formais, surge a
necessidade de a pensar filosoficamente, libertando os artistas do preconceito
histórico.
Danto
e outros pensadores que trataram este tema não consideram que a arte ou a
história da arte tenham sido extintas por completo, afirmam antes que a chegada
de uma mudança fundamental no que diz respeito à construção de ambas as áreas
permite-nos pensá-las com um “antes” e um “agora”. Refere-se ao fim de uma
determinada narrativa histórica ligada ao universo artístico, e não à extinção
da temática desta mesma narrativa. De um ponto de vista cronológico, podemos
olhar para a História da Arte como uma narrativa que tem em conta uma sucessão
de estilos: vincada num discurso progressista e selectivo, seguindo a tentativa
de impor uma prática que se centra na busca de um ideal de pureza e verdade,
uma ascensão da obra de arte a um estado outro, superior. A esta conjuntura,
contrapõe-se um momento pós-histórico da arte, «imune a manifestos e demandando
uma prática inteiramente crítica» (Danto,
2006: 33 cit. Amaro, 2009: 442).
Antes de terminarmos
este ponto de situação, apresentamos um testemunho que nos parece fundamental
para o entendimento da questão. Giorgio Agamben, através do seu ensaio “O que é
o contemporâneo? E outros ensaios” sistematiza algumas ideias na tentativa de
se aproximar da noção de que falávamos no início deste texto: o homem
contemporâneo. Este indivíduo, que nas artes plásticas personifica a figura do
criativo, surge-nos nesta obra enquanto agente intemporal, não confinado a
qualquer determinismo contextual, como sugerem outros pensadores que já havemos
analisado até aqui. Partindo desta perspectiva, aqui reside a pertinência,
quanto a nós, do texto que se segue.
Em
“O que é o contemporâneo?” Giorgio Agamben (1942 - ) propõe uma mudança do
tempo, uma interrupção da cronologia por um tempo outro. Não promove uma
entrada forçada para um mundo novo, mantém as coisas como são, apenas um pouco
fora do lugar.
Fala-nos
da noção de dispositivo: qualquer
coisa que tenha a capacidade de orientar, determinar, controlar e assegurar os
gestos, as condutas, as opiniões e os discursos dos seres viventes.
Outra
noção que surge ao longo do seu discurso é a de ciclo de subjectivação: um novo sujeito que se constitui a partir
da negação de um velho. Não se trata de uma superação mas de um mascaramento.
Agamben
propõe a profanação dos dispositivos de governo e a assunção de um ingovernável
como ponto de fuga e início de uma nova política.
Ser
contemporâneo é olhar para o não vivido, ver o escuro na luz. Do sujeito
vacilante, espectral, deve emergir um gesto que reduza o sujeito a uma
suspensão, reserva, que em todas as matérias é uma grande regra de viver com
êxito.
Não
podemos falar de um retorno às condições perdidas na história, porque é somente
possível entrever às luzes do presente o escuro que lhe é inerente, um olhar
não saudosista do passado e a miragem de um futuro sem esperanças outras, que
não a própria capacidade de pensar o presente.
Já
diria Nietzsche que é verdadeiramente contemporâneo quem se dissocia do mesmo,
quem vê escuridão na luz, quem não coincide perfeitamente com este mas,
exactamente por isso, é capaz de melhor compreender o seu tempo.
Podemos
chamar contemporâneo a quem não se deixa cegar pelas luzes do século e consegue
entrever nessas o lugar da sombra: quem percebe no mais moderno os índices e as
assinaturas do arcaico. Logo, temos que aderir à contemporaneidade mas ao mesmo
tempo a distância da mesma é necessária, de modo a que possamos ser críticos.
Ser
contemporâneo é alguém que dividindo e interpolando o tempo, está em condições
de o transformar e de o pôr em relação com os outros tempos, de ler de modo
inédito a sua história.
O
presente não é outra coisa senão a parte do não-vivido em todo o vivido. A
atenção dirigida a esse não-vivido é a vida do contemporâneo. Ser contemporâneo
significa, nesse sentido, voltar a um presente em que jamais estivemos.
Em
termo de conclusão, resta-nos apropriar algumas das ideias que aqui foram sendo
sistematizadas e aplicá-las no desenvolvimento de todo o processo da exposição
«Outros Ensaios». É promovido um movimento reflexivo, auto crítico, quer por
parte dos artistas, da organização e do público. Regidos pela ideia de
relativismo, todos os intervenientes procuram encontrar respostas e estimular
questionamentos perante uma realidade que é plural, fruto da construção dos
próprios sujeitos, já defendida por Nietzsche. Como podemos pensar numa única
noção do mundo quando todos nós vemos o mundo de forma diferente? Aquilo que
entendemos por facto ou realidade é sempre o resultado de uma interpretação.
Tal como nos dizia Theodor Adorno
(1903-1969), a arte deixou de nos dar respostas para fazer-nos perguntas.
Deixou de nos apresentar beleza para nos apresentar problemas e inquietações.
Importa ao artista quem o questiona e não quem o segue, de forma acrítica.
A arte deve ser politicamente comprometida
mas livre na sua acção criativa: deve agir como questionamento interno da
realidade social. O artista não deve fazer propaganda mas antes ensinar o
observador a ser exigente, revolucionário. É isso que aqui procuramos, é daqui
que nasce a pertinência deste projecto: citando Augusto M. Seabra
«”Contemporâneo” não é pois um estado do presente que vem na sequência de um
passado e que rasga novos horizontes, prometendo um futuro. Por isso nestes
tempos tão drásticos de crises se impõe repensar o que é a “condição
contemporânea” de uma criação artística e cultural e da sua recepção. É uma
reflexão a continuar.»
Bibliografia
AGAMBEN, Giorgio, O que é Contemporâneo? E outros ensaios,
Chapecó, Argos, 2009.
BAUDELAIRE, Charles, «O pintor da
vida moderna» in A invenção da
modernidade (sobre arte, literatura e música), Lisboa: Relógio D’Água
Editores, 2006.
BINDE, João Luis, Não-Lugares – Marc Augé (resenha), Revista Antropos – Volume 2,
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GAGGI, Silvio, Modern
/ Postmodern: a Study in Twentieth-Century Arts and Ideas, University of
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HABERMAS,
Jürgen, O Discurso Filosófico da Modernidade; trad. Ana M. Bernardo e outros,
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LYOTARD, Jean-François,
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PEREIRA,
Miguel Baptista Modernidade e Tempo: Para
uma Leitura do Discurso Moderno, Livraria Minerva, Coimbra, 1989.
Artigos
AMARO, Danielle Rodrigues, Arte e História após o anúncio do “fim”,
segundo Arthur Danto e Hans Belting, 2009. (http://www.ppgartes.uerj.br/spa/spa3/anais/danielle_amaro_415_426.pdf
consultado em 19/12/12).
SEABRA, Augusto
M., De que falamos quando falamos de “contemporâneo”?. Ípsilon, 2011. (http://ipsilon.publico.pt/artes/texto.aspx?id=298117
consultado em 30/5/13).
RATO, Vanessa, O
pós-modernismo morreu, viva a altermodernidade. Ípsilon, 2009. (http://ipsilon.publico.pt/artes/texto.aspx?id=226994
consultado em 30/5/13).